JOÃO DOS SANTOS MARTINS
Materiais Diversos
Numa conferência-performance intitulada “Salário Máximo”, apresentada na Assembleia da República Portuguesa, em Lisboa, em 2014, Vera Mantero dizia que a dança lhe parecia a arte menos apropriada para falar do que quer que fosse. Seria, segundo a autora, mais simples vincular uma ideia concreta no cinema ou na literatura. Como seria então se uma dança falasse expressivamente para que se fizesse entender?
Tatibitate foca-se na relação entre a coreografia enquanto suporte artístico não-comunicativo (que de todas as formas expressa), e a língua gestual como sistema de vocabulário baseado em gestos cujo fundamento é, precisamente, viabilizar a comunicação na esfera social.
O conflito aparente que daqui se extrai aponta para a relação entre política e poética, que se expressaria na ideia de ‘incorporação de texto’ versus ‘composição de gestos sem significado’. Se a dança é geralmente caracterizada como uma prática formal, de que maneira seria possível pensar incorporar texto e conteúdo a um corpo? Como pensar numa transposição literal de coreografia para um corpo, separando e unificando a coreo — dança —, da grafia — escrita? Ou ainda: como transformar uma “técnica” em “tecnologia” de comunicação e, ao mesmo tempo, revertê-la numa poética experimental de dança? Será que a dança, que é em si um gesto de rutura que privilegia a sensualidade e a transgressão, numa sociedade maioritariamente desincorporada e dominada pela experiência e conhecimento cognitivos, deixaria de ser dança por “devir” comunicação?
A prática coreográfica ocupa hoje um lugar estimulante de redefinição. Por um lado, observa-se uma destituição geral da ideia de “movimento dançado”, como motivo dominante de produção coreográfica, associado a uma completa dispersão da “técnica”, tal como veiculada na modernidade. Por outro, observa-se uma deslocação dos sentidos que recoloca a prática num lugar especulativo de emancipação do objeto dançado perante o sujeito que dança.
Este projeto tenta aliar a escrita de uma dança à escrita de um texto, tentando pensar na especificidade do suporte coreográfico. A questão vai remotamente aos meandros da ideia de coreografia enquanto algo destituído de “espírito”, como fora caracterizado no século XVII, por ser escrita independentemente da prática da dança.
A coreografia, tal como imaginada por Raoul Feuillet no seu tratado, era redigida, primeiro, em papel, através do sistema de notação por si criado, e só posteriormente interpretada e transposta para o corpo. Existia, pois, uma verdadeira separação entre uma idealização coreográfica, escrita como lei, em papel, e uma realidade dançada, fruto de uma prática.
Tatibitate foca-se neste mesmo paradoxo, tentando articular processos de incorporação e apropriação em dança. Como é que as experiências de corpo são também elas fundadoras de uma forma de estar no mundo, de que forma elas têm valor e significado? “Como é que se é — enquanto ser e sujeito— afetado e transformado pela prática de determinadas danças?”; “Quão diferentes são as danças que se executam da ideologia que um bailarino sustenta com o seu próprio corpo, enquanto ser estético e social?”
Da mesma forma que se procurará construir uma dança que é um texto e escrever um texto que é uma dança, interessa igualmente a singularidade de “dançar” uma língua e de “falar” uma dança, ou seja, observar a forma como a prática corporal de aprender e ser fluente em língua gestual se expressa em diferentes falantes, e olhar para os processos de subjetivação que se materializam a partir da experiência de um corpo.
João dos Santos Martins
(29.04.2019)
Coreografia JOÃO DOS SANTOS MARTINS
Texto JOSÉ MARIA VIEIRA MENDES
Música JOÃO BARRADAS
Dança ADRIANO VICENTE
Desenho de Luz FILIPE PEREIRA
Registo Vídeo JORGE JÁCOME
Registo Fotografia JOSÉ CARLOS DUARTE
Produção SOFIA MATOS/MATERIAIS DIVERSOS
Produção Executiva PARASITA ASSOCIAÇÃO
Coprodução ALKANTARA | CENTRO CULTURAL VILA FLOR (GUIMARÃES) | MATERIAIS DIVERSOS | PARASITA ASSOCIAÇÃO
Residências artísticas CENTRO CULTURAL MALAPOSTA/ODIVELAS | ESTÚDIOS VÍTOR CÓRDON/LISBOA | GRAND STUDIO/BRUXELAS | 23 MILHAS/ÍLHAVO
João dos Santos Martins, nascido em Santarém, no ano de 1989, João estudou dança e coreografia em várias instituições na Europa entre 2007 e 2011, das quais P.A.RT.S. e e.x.er.c.e.. Trabalha desde então articulando a sua prática em diversas colaborações, expressas em peças como “Le Sacre du Printemps” (2013), com Min Kyoung Lee, “Autointitulado” (2015), com Cyriaque Villemaux e “Antropocenas” (2017), com Rita Natálio. João colaborou em espetáculos do Teatro Praga, fez uma adaptação do solo “Conquest” (2011), de Deborah Hay e dança em obras de Eszter Salamon, Xavier le Roy, Moriah Evans e Ana Rita Teodoro. Em 2017, organizou o ciclo Nova — Velha Dança, momento de reflexão sobre a história recente da dança em Portugal onde, juntamente com Ana Bigotte Vieira, desenvolveu uma Timeline para documentar coletivamente estas práticas. João é editor do jornal Coreia dedicado ao discurso das artes e dos artistas numa relação próxima com a dança. A sua peça “Projecto Continuado” (2015) recebeu o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para Coreografia, em 2016.